O Dia da Consciência Negra, celebrado desde 1960 no Brasil, e ligado sobremaneira ao nome de Zumbi dos Palmares, traído e morto em 1695, na Bahia, quando teve a cabeça decepada do corpo, salgada e levada ao governador Melo de Castro, de Pernambuco, que em seguida determinou que pusessem sua cabeça erguida em um poste - o lugar mais notório da praça, segundo Castro - para "satisfazer os ofendidos e atemorizar os negros que julgavam Zumbi um imortal", não deveu-se somente ao fato por si só de Zumbi ser o líder simbólico da raça negra durante o Brasil Colonial nem da forma brutal como foi assassinado, mas especialmente pelo seu ideal de libertação que inadvertida e indiretamente, contagiaria o espírito libertário de muitas outras figuras importantes na história recente deste país, que lutaram em nome da mesma causa.

Um século adiante da morte de Zumbi, outro símbolo de luta contra a escravidão romperia estridente o silêncio do cenário de opressão, desta vez com a jovem negra Esperança Garcia, de 20 anos, que se debelou contra Antônio Vieira do Couto, seu dono, de muitos escravos e da fazenda localizada hoje na cidade de Nazaré do Piauí, no estado do Piauí. Não conseguindo unir forças para presenciar e suportar mais inúmeros maus-tratos, colocou a própria vida em risco e peticionou uma carta de apenas 164 palavras ao governador da Província do Maranhão, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro - sim, Esperança mesmo com grafia nem tanto sofrível sabia escrever, era alfabetizada, pois havia antes vivido em fazenda de padres jesuítas por quem foi alfabetizada e aprendeu a rezar. Denunciou agressões feitas pelo seu dono também à sua família, especialmente aos seus rebentos. Não unânime o fato de ser alfabetizada, era também uma mulher "politizada". Sua carta até o presente momento é considerada a segunda mais antiga do Brasil manuscrita e assinada por uma escrava negra.

O mesmo Brasil, menos de um século depois, já sob o comando de dom Pedro II, assistiria seu Ministro da Justiça lutar pela proibição do tráfico e importação de negros africanos na condição de escravos através da aprovação da Lei que levou seu nome, Eusébio de Queiroz, aprovada em 4 de setembro de 1850. Houve pressão externa da Inglaterra com a "Bill Aberdeen", um projeto de lei que previa extinguir o tráfico de escravos da África à América criado cinco anos antes. Bastou um problema resolvido para nascer outro: o tráfico interno de negros, entre as Províncias nordestinas (que vendiam) e sulistas (São Paulo e Rio de Janeiro, que compravam) começou a despontar. O desfecho deste "clico vicioso" renderia uma vitória agradável para o Brasil, novamente cedendo às pressões externas, quando passou a consolidar a contratação de trabalhadores assalariados invés da condição de escravidão.

Menos de quatro décadas depois e um ano antes da Proclamação da República, acontecida em 1889, com a luta dos incansáveis abolicionistas, entre eles o pernambucano Joaquim Nabuco e o baiano André Rebouças, e os jornalistas José do Patrocínio e Antônio da Silva Jardim, alguns dos mais notáveis nomes do movimento, e forte pressão popular desde 1870, conseguiram com que a princesa Isabel assinasse sancionando a Leia Áurea, na sua passagem pela terceira e última regência, quando o pai Pedro II estava em viagem ao exterior. No dia 13 de maio de 1888, estava decretada a extinção da escravidão no Brasil.

Todos estes pleitos foram gradualmente vencidos, cada qual respectivo ao seu tempo e à sua maneira, somando conquistas para um país tropical tão diferente de raças e tão igualitário em ideais representados pela soberania. Os créditos destas vitórias devem se atribuir não somente a Zumbi dos Palmares, Esperança Garcia, Eusébio de Queiroz, Joaquim Nabuco, André Rebouças, José do Patrocínio, Silva Jardim, e a própria princesa Isabel. Fazer isso seria prestar uma avaliação amesquinhadora e injusta de nossa história com aqueles que viveram no anonimato e com a mesma bravura deram o sangue para a consolidação da República que hoje somos, com aberturas para se tornar cada vez mais igual perante as raças.

Quanto os negros foram rompendo as amarras históricas invertendo uma situação de inferioridade, problema histórico da condição em que foram rebaixados por décadas, e se posicionando melhor nos últimos tempos no Brasil e mundo a fora. O antropólogo Darcy Ribeiro, procurou em seu livro "Ensaios Insólitos" explicar as condições que teriam um povo mestiço, entre eles mulatos, negros, índios e brancos, de progredir numa civilização tropical educado pelo catolicismo barroco, o que classificou de "extravagante" e "atrasado" - o fato de rezar em latim e confessar em português. O Brasil tinha tudo para não dar certo em qualquer aspecto. Mas mostrou o contrário! O Brasil nos últimos 90 anos mudaria drasticamente, segundo ele, deixando para trás aquela "óbvia inferioridade racial inata", "asnal-lusitana" e "católico-barroca" do brasileiro que era como a peleja diária do sol "que todo dia faz de conta que nasce e se põe". O Dia da Consciência Negra no Brasil deve muito aos nossos heróis anônimos também, a este povo mestiço, que em tom de igualdade vai conseguindo respeitar o direito que cada raça sempre deveria ter tido dentro da sociedade.

Por Pedro Rodrigues